segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Voragem

(Crônica premiada pela Academia Paulista de Letras)


Estava atrasada, naquele dia tudo parecia ir contra mim, quando acordei eram apenas cinco minutos, mas antes mesmo que pusesse os pés para fora, passaram-se vinte deles sem que eu notasse. Na rua, o trânsito infernal típico de uma segunda feira, as pessoas correndo, alheias ao resto do mundo e sem perceber o sol que surgia no horizonte.
O mundo se apressa e se esvai, ritmado pelo bater dos relógios, pela ilusão do infinito tempo e pela insignificância em relação ao imensurável. O tempo permanece indomável, indiferente aos que tentam adequá-lo, ainda assim desperdiçamos o que cada vez menos nos resta, nesta inútil tentativa de conquistá-lo.
As pessoas consomem suas essências ao buscarem compreender que de fato não se pode ver ou dominar o tempo que não se sente passar, e ainda que exista muito a ser feito é a pressa que aproxima o fim.
O sol tornava-se mais cálido enquanto a aurora se instaurava, o cinza das nuvens agora dava lugar a um majestoso azulado. A exacerbada pressa que tomou conta da rua já me fazia questionar se as pessoas realmente não viam porque não queriam, ou se os relógios haviam as feito cegas.
A natureza continuava passando despercebida por entre nós. É simples, e não é preciso entendê-la, no entanto complexa a felicidade com que ela nos presenteia. Temos um céu azul, basta olhar para cima. Temos um sol que reluz com intensidade e em vez de reparar quando ele cintila, só nos damos conta nos dias de absoluto inverno em que ele não mais está.
Por hoje eu desisti do trabalho, sentei-me numa mesa de cafeteria e passei apenas a observar os semblantes a minha volta. Estava eu rodeada pela ânsia alheia. Já podia até imaginar o que estariam pensando de mim: - Vida boa a desta mulher, sentada tranquilamente numa mesa arejada, tomando o seu café, vendo a vida passar.
Para eles, difícil era, imaginar a coragem que é preciso para ignorar os compromissos e estar aqui simplesmente contemplando o existir.
Este é o mausoléu de toda a felicidade, toda esperança e toda vontade. Este é o sepulcro da transcendência humana. Daqui eu ainda posso ver o céu, o único vestígio de vida que há, pois aqui na Terra, tudo o que vejo são escravos de suas próprias criações e de sua época.
Na mesa ao lado, uma mulher aparentemente infeliz, no entanto jovem, bonita e com uma vida inteira pela frente para fazer valer a pena. Lia muito interessada um livro de autoajuda, e eu pensei aqui comigo: - Perdemos tempo comprando esses livros, e ainda assim não aprendemos como acabar com a angústia de se sentir só mais um, a fazer o que todos fazem e sem coragem de largar os compromissos por um dia para ver o sol.
O vespertino alaranjado no céu se tornava evidente, eu já havia passado do décimo café; na avenida em frente, o entupimento dos carros anunciava o horário do “rush” e o som estridente das buzinas me machucava os ouvidos. A mesma pressa, mas desta vez para chegar em casa e encontrar o pouco de alento e paz necessários para enfrentar o dia seguinte.
Levantei-me, paguei a conta e agradeci os serviços do velhinho prestativo que me atendera. Saí sem rumo e com uma vontade imensa de me perder por este labirinto de edifícios mortos, muros de concreto e ruas sem saída.
As pessoas afobadas passavam por mim sem notar-me, tropeçavam umas nas outras e nem olhavam para trás.Querem nos fazer acreditar que somos um só, que temos força, que somos capazes, no entanto, cada vez mais os caminhos se separam, cada um por si, cada um na sua estrada e sem entender que às vezes é preciso saber voltar atrás e questionar os limites e razões que nós mesmos nos impusemos.
Até na longínqua cidade, a luz das estrelas o tempo ignorava, e em seu solo pousava. A branda luz a me iluminar é o que me faz seguir adiante e não temer mais a sombra do amanhã.
Eu queria ver a noite passar e em sua escuridão levar tudo o que resta de frio por aqui, arrancar deste inferno todos os que ainda insistem em permanecer estagnados em sua própria insignificância. Eu quero ver um novo dia raiar e quero ver o mundo amanhecer ao seu lado, com mais força, sem medos, e sim, com toda a coragem que se precisa para que as coisas passem a fazer um sentido verdadeiro em nossas vidas.

- Dedicada a Rafael Ribeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário